SABER ERA PRECISO

 


Ler é diferente de ver... a leitura permite ver melhor, isso sim. Eis aqui um depoimento que permite sentir como a leitura (a convivência concreta com obras escritas) constrói e constitui  subjetividades complexas.  

Saber era preciso

                                  Benedito Celso de Souza

Quando eu li “1968 – o ano que não terminou”, de Zuenir Ventura, uma referência à geração dos anos sessenta chamou-me à atenção. O autor referiu-se a ela como a geração que se fez lendo, contrariamente às gerações que se seguiram e que se formariam vendo.  

Recordo que me fiz em meio aos livros, solto para a criatividade de tudo o que era apenas imaginável. Desde uma viagem pela casa dos mortos, acompanhando as recordações de Dostoievski, até o “Rio dos afogados”, de Miécio Tati, que achava estranho que um homem pudesse estar parado junto a uma esquina, “de gravata e sem chapéu”. Inscrevi-me numa ansiosa procura por um mundo novo com Aldous Huxley e acompanhei a aventura solitária de um velho no mar através da narrativa cativante de Hemingway. Uma fascinante viagem de Rilke a Lindolf Bell, passando por todas as variantes para conhecer lugarejos escondidos ou guardados no fundo da imaginação e pelos mais profundos sentimentos. Havia disputa de lugares para devorar em leitura o que estivesse ao alcance das mãos. Conviveram comigo Lord Byron, Steinbeck, Vitor Hugo, Tolstoi, Cronin e autores brasileiros do arcadismo que me fariam ver a filigrana sutil da sensibilidade de Mário Quintana, a rica narrativa de Érico Veríssimo, as paisagens de Alencar, os meninos de Lins do Rego e a profundidade analítica de Machado de Assis.

De repente, a descoberta de Fernando Pessoa, a crueza de Jorge Amado, as memórias de Graciliano, o hermetismo de Paulo Bonfim ou o cotidiano retratado pelos cronistas sem sucessores como Rubem Braga, Paulo Mendes Campos e Fernando Sabino. Quem se faz lendo acaba sendo produto de uma mistura de estilos e de maneiras diferentes de pensar, agir e sentir. Uma mistura da sociologia de Èmile Durkheim com a psicanálise social de Erich Fromm. Um resultado de contrastes, como o Brasil de Roger Bastide.

Os meus anos sessenta chegaram recheados pelas fantasias de Monteiro Lobato, até serem decorados com "Ulisses" de Joyce ou a leitura com gosto de chão brasileiro de Guimarães Rosa. Quando adolescente, li e ouvi Malba Tahan, acabando por ser irreverente quando o julguei um grande matemático, porém com uma má temática. Fiz uso em conversas sérias de citações de Exupery e me atrevi a fazer prosa com o “Serra do Rola-Moça” de Mario de Andrade. Em algum lugar recordo-me de ter lido um conto sobre uma geração de “kapaz” que gozavam do direito de saber da realidade do mundo antes de optarem por nascer ou recusarem-se a vir à luz. É de um grande autor japonês cujo nome não me ocorre. Platão, Shakespeare, Ésquilo, Demóstenes começaram a povoar meus anos sessenta, convidando outros como Rousseau, Locke, Montesquieu e até o atrevido Régis Debray.  Isso sem citar a leitura de autores eróticos que iam de Júlio Ribeiro, com a inesquecível visita noturna de Lenita ao quarto de Barbosa, até Henry Miller de todos os trópicos. Todos ocuparam o tempo de minhas leituras. Pouco a pouco a festa foi se acabando e Carlos Drummond de Andrade se foi para Minas que não mais havia, enquanto Manuel Bandeira se recolhia na Pasárgada dos becos do Recife e Guilherme de Almeida ia se tornando nós todos no alto das prateleiras empoeiradas. O voo do condor baiano Castro Alves ficava limitado a “flashes” para ilustrar narrativas de revolta ou trechos de discursos encomendados, como até hoje se faz com Rui Barbosa, cuja águia poucos conhecem. 

A geração dos que se fariam vendo sequer se importou em colecionar os guardados na memória, passando a enfileirar livros fechados da geração do livre-pensar. Era um processo de Kafka que estava a caminho, já anunciado por George Orwell em “1984”. Era a trágica descoberta dos arquipélagos de Alexander Soljenitsin, que abriria a década de setenta. Uma revolução dos bichos em nome de uma liberdade que tomaria conta da geração dos anos sessenta enquanto muita gente se dedicava a debruçar-se demoradamente no estudo de manuais. A interpretação cedia lugar à constatação e aceitação do inevitável como se fosse óbvio. Colocava-se uma sentinela na retina dilatada dos audaciosos. Era preciso ver. Saber não era mais preciso.

Na memória da geração dos anos sessenta resta hoje um saudosismo romântico e uma vontade escondida de voltar. Campear a moral enunciada como nas antigas fábulas de Esopo. Ter a ética como instrumento de convivência social. Com verdades naturais sabidas e respeitadas tão só porque sabidas. Verdades não impostas. Poder assistir a um combate imaginário do Quixote de Cervantes, esquálido cavaleiro de triste figura, montado em seu Rocinante e encetando sua frágil lança contra moinhos de ventos. Mas com amigo leal. Com sua verdade sem mancha, ainda que ridícula para muitos nos dias atuais. (Março/1993)


BENEDITO CELSO DE SOUZA é paulista nascido em Santa Cruz do Rio Pardo, em 1943. Formou-se pela Universidade de São Paulo (USP) e exerce a advocacia há 27 anos. Antes integrou a Polícia Militar do Estado de São Paulo, dela se reformando em 1993 no posto de Coronel. Humanista e amante da literatura, desde cedo escreveu crônicas e poesias. Em 1986 publicou um ensaio sobre a Polícia Militar no campo do Direito Constitucional: “A Polícia Militar na Constituição”, pela Editora Universitária de Direito. Publicou os romances “Inhaú; Ma” (2015), “Tuta” (2017), “Adamastor” (2019) e “A morte que eu vivi” (2020) todos pela Editora Pontocom. Escreve agora “Ariela”, a ser publicado em 2023.




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