TEM ALGO PARA LER AÍ?

Saghar Daeiri, Donatio mortis causa, 2021

"As rotinas sociais do Brasil deste momento são difíceis de suportar, de aturar. E o escritor deste texto consegue captar o 'tudo segue na mesma", mas o faz de uma maneira extremamente criativa, com frases curtas, saborosas e ao ponto. Leia devagar e verifique se não é isso, mais ou menos, que está acontecendo com todos nós brasileiros."

Não tem nada para ler aqui
                                                         Gilberto Amendola 

Não tem nada para ler aqui. Vire a página. tome um café. Abra a janela. A semana está só começando. Gaste um tempo com seus planos. Os boletos estão chamando. E a lã da vida ainda precisa de um bom bordado.

Não tem nada para ler aqui. A bicicleta que foi encostada vai acabar enferrujando. As plantas da casa estão sedentas. Passou a hora de um check-up. Ou um check-in. Corra um pouco. Respire fundo. Estude uma língua estrangeira. Acho que, no mínimo, o seu cachorro está querendo passear.

Não tem nada para ler aqui. Quem precisa de outro homem reclamando. É só uma cola de farinha para corações de mentira. Miudezas de um adeus. Esse é somente outro álbum de figurinhas. Todas repetidas - onde todo mundo é um mero souvenir.

Não tem nada para ler aqui. É só um fluxo, uma onda, marolinha, frases soltas, imãs de geladeira que se desprendem e jazem desmagnetizados no chão da cozinha. É mais um quebra-cabeças - desses que a gente descobre no fim a falta de uma peça.

Não tem nada para ler aqui. É só mais um copo meio vazio. Outro post-it grudado no computador. Um baleiro de obviedades que nunca parou de girar. Um alerta, uma placa torta advertindo sobre algum passo em falso que já foi dado. 

Não tem nada para ler aqui. A perícia é quem vai definir se a causa mortis foi excesso de fulgor ou alguma espinha entalada na garganta. Mudem de calçada. Afastem os paparazzi. Por que tanta curiosidade? Circulando?

Não tem nada para ler aqui. São apenas coisas quebradas, luzes que não acendem, vazamentos no teto e móveis impossíveis de montar. Não se assustem. Esse barulho vem do meu encanamento ou de minhas encanações. São assombrações inúteis. Gasparzinho.

Não tem nada para ler aqui. São como bulas de remédio, regulamentos complicados, manuais de instrução ou cartas de amor sem destinatários. São como hieróglifos de um futuro impossível.

Não tem nada para ler aqui. Você precisa de um novo par de óculos. Você precisa ouvir rock argentino. Você precisa aprender a cozinhar o básico. Você precisa configurar o seu cérebro enguiçado. Você precisa aprender a se confortar com suas próprias mentiras ou contentar-se com tardes vazias de inspiração escassa.

Não tem nada para ler aqui. A pandemia não acabou. O presidente não caiu. O dólar segue alto. O carnaval é em abril. Não trago nenhuma epifania no bolso de trás da minha calça jeans. Tudo continua no seu devido lugar. Qualquer novidade eu mando um zap.


Gilberto Amendola, repórter do Estadão e observador da vida urbana. Conheça o escritor.

In: Jornal O Estado de São Paulo, 31/01/2022, p. C2. 


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